Por Luís Fernando Tófoli
Caros Amigos Especial Saúde
Novembro 2012
As cenas são conhecidas de todos: legiões de homens, mulheres e crianças espalhando-se no vácuo social das cidades, iluminando seus rostos com o brilho inconstante de isqueiros, consumindo crack e por ele sendo consumidos. Essas imagens se repetem em todo o país, conclamando por uma resposta.
A solução parece ser simples, e vem de mais de uma fonte. Por exemplo, o doutor Drauzio Varella, divulgador de temas de Saúde, deixou claro que, na sua opinião, a saída envolve internação compulsória. O Ministro da Saúde Alexandre Padilha, emprestando legitimidade às ações controversas de recolhimento compulsório pela prefeitura do Rio de Janeiro, explicitou em abril deste ano que também considera válida a internação involuntária de adultos. Mesmo no campo da ficção, praticamente todos os personagens drogados e alcoólatras das novelas só melhoram quando são internados.
A sensação de urgência, exortada pela constante exposição das calamidades oriundas do uso e do comércio de substâncias ilegais nos inclinam a considerar a possibilidade de que, nesse caso, as políticas de Saúde aproximem-se das práticas de um estado de exceção. Ao se compreender os usuários de crack somente como doentes sem livre-arbítrio ou adictos cujos crimes sustentam seu vício, nada mais lógico para o cidadão de bem do que defender a retirada dos noias do espaço público.
SEM JUSTIFICATIVAS
Se pudermos ultrapassar a camada do “senso comum”, outras perspectivas se desdobram. No caso das internações involuntárias (decididas pela equipe contra a vontade do paciente) ou compulsórias (determinadas por decisão judicial), pode-se dizer claramente que não há evidências que justifiquem o seu uso sistemático enquanto política pública. Embora seja eventualmente necessário, quando comparado a alternativas voluntárias, o tratamento involuntário não é mais eficiente, está associado a maiores riscos éticos e não apresenta maior eficácia em termos econômicos.
A falta de justificativa é tão grande que até o conservador Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime emitiu documentos que orientam que alternativas de colaboração terapêutica são preferíveis à coerção por meios judiciais, e que a internação involuntária deve ser indicada somente quando outras formas de tratamento tiverem sido esgotadas, em casos onde haja claros riscos para a integridade do usuário e/ou seu entorno social.
ZONA CINZENTA
Entretanto, há uma enorme zona cinzenta na interpretação do que são tais riscos, o que leva à prática de abusos evidentes. O Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos, realizado em 2011 pelo Conselho Federal de Psicologia em locais de internação para usuários de drogas – em especial as chamadas comunidades terapêuticas (CTs) – demonstrou flagrantes desrespeitos aos direitos individuais e às normas sanitárias.
São preocupantes, portanto, os relatos de que o governo brasileiro esteja se movendo no sentido de financiar as CTs, legitimando-as como política pública. Isso foi ensaiado inicialmente pelo Ministério da Saúde, mas quando padrões de responsabilidade mínimos foram exigidos, as comunidades terapêuticas praticamente desistiram. Por meio da pressão de seus representantes no Parlamento – na maioria ligados à bancada religiosa – há a sinalização de que as CTs poderão receber verbas por meio da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), que é ligada ao Ministério da Justiça.
Aqui se colocam diversas questões. Se as CTs não se submeteram à auditagem do Ministério da Saúde, podemos confiar que, ao receber o dinheiro da SENAD, elas o empregarão de forma correta e para o prol das pessoas sob tutela? É lícito que o estado laico forneça financiamento para unidades que são, na maior parte, mantidas por entidades religiosas e, por isso, já não pagam impostos? Como incluir minorias religiosas, que já sofrem preconceito, em serviços confessionais? Por que colocar dinheiro público em um sistema que é carente de evidências de efetividade a longo prazo?
HÁ ALTERNATIVAS?
Essas e outras perguntas inquietantes nos levam a refletir sobre qual modelo seria uma alternativa ao da internação. Apesar de esse ser um debate complexo, diante do que está disponível, acredita-se que solução passe por uma rede interdisciplinar, voltada para o provimento de um conjunto de ações, que incluiriam redução de danos para usuários de rua, cuidados ambulatoriais, reabilitação psicossocial, acolhimento voluntário e transitório em repúblicas terapêuticas laicas, cuidados clínicos, e internação de curta duração, em geral para desintoxicação. Construir uma rede acolhedora e multifacetada suficiente exige dinheiro, o que não é fácil em um contexto onde a repressão é a política pública para as drogas que mais recebe investimentos.
É verdade que quase todas as opções citadas – com exceção de ambulatórios – estão contempladas por recentes medidas de financiamento do Ministério da Saúde. Há, porém, dois grandes problemas a serem destacados. Um é que o foco do Ministério tem se mantido no financiamento de serviços e equipes, e não do conjunto de ações a serem realizadas. O outro advém do fato que a decisão em relação à maioria das políticas de Saúde cabe, em última instância, ao município – uma esfera política particularmente sensível à pressão local para soluções sobressaltadas.
Além disso, o que continua a ser servido pela mídia ao olho público é o já monótono espetáculo das ‘cracolândias’ – o que nos faz pensar também sobre a solicitação obsessiva desse mesmo olho público para que a mídia assim o sirva. Nesse círculo vicioso, escapam constantemente ao debate tópicos que incluem, entre outros, a efetividade da chamada Guerra às Drogas, a descriminalização do uso pessoal (como feita em Portugal), o uso de psicodélicos como novas formas de tratamento, os limites da estratégia de Redução de Danos, e até mesmo os conflitos de interesses ocultos.
Há, porém, novidades interessantes neste cenário. Iniciativas como a Rede Pense Livre, a campanha “Lei de Drogas: é preciso mudar” e o movimento pela regulamentação da maconha – só para citar alguns – causam incômodo e geram a necessidade de repensarmos as políticas públicas para drogas no Brasil, incluindo o tabaco e o álcool. Se a abordagem preponderante ao uso de drogas é eminentemente construída por valores sociais, é preciso pensá-la, necessariamente, para além do setor Saúde. Aí pode ser que encontremos esperança.
Luís Fernando Tófoli é psiquiatra e professor da Universidade Federal do Ceará.
Caros Amigos Especial Saúde
Novembro 2012
As cenas são conhecidas de todos: legiões de homens, mulheres e crianças espalhando-se no vácuo social das cidades, iluminando seus rostos com o brilho inconstante de isqueiros, consumindo crack e por ele sendo consumidos. Essas imagens se repetem em todo o país, conclamando por uma resposta.
A solução parece ser simples, e vem de mais de uma fonte. Por exemplo, o doutor Drauzio Varella, divulgador de temas de Saúde, deixou claro que, na sua opinião, a saída envolve internação compulsória. O Ministro da Saúde Alexandre Padilha, emprestando legitimidade às ações controversas de recolhimento compulsório pela prefeitura do Rio de Janeiro, explicitou em abril deste ano que também considera válida a internação involuntária de adultos. Mesmo no campo da ficção, praticamente todos os personagens drogados e alcoólatras das novelas só melhoram quando são internados.
A sensação de urgência, exortada pela constante exposição das calamidades oriundas do uso e do comércio de substâncias ilegais nos inclinam a considerar a possibilidade de que, nesse caso, as políticas de Saúde aproximem-se das práticas de um estado de exceção. Ao se compreender os usuários de crack somente como doentes sem livre-arbítrio ou adictos cujos crimes sustentam seu vício, nada mais lógico para o cidadão de bem do que defender a retirada dos noias do espaço público.
SEM JUSTIFICATIVAS
Se pudermos ultrapassar a camada do “senso comum”, outras perspectivas se desdobram. No caso das internações involuntárias (decididas pela equipe contra a vontade do paciente) ou compulsórias (determinadas por decisão judicial), pode-se dizer claramente que não há evidências que justifiquem o seu uso sistemático enquanto política pública. Embora seja eventualmente necessário, quando comparado a alternativas voluntárias, o tratamento involuntário não é mais eficiente, está associado a maiores riscos éticos e não apresenta maior eficácia em termos econômicos.
A falta de justificativa é tão grande que até o conservador Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime emitiu documentos que orientam que alternativas de colaboração terapêutica são preferíveis à coerção por meios judiciais, e que a internação involuntária deve ser indicada somente quando outras formas de tratamento tiverem sido esgotadas, em casos onde haja claros riscos para a integridade do usuário e/ou seu entorno social.
ZONA CINZENTA
Entretanto, há uma enorme zona cinzenta na interpretação do que são tais riscos, o que leva à prática de abusos evidentes. O Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos, realizado em 2011 pelo Conselho Federal de Psicologia em locais de internação para usuários de drogas – em especial as chamadas comunidades terapêuticas (CTs) – demonstrou flagrantes desrespeitos aos direitos individuais e às normas sanitárias.
São preocupantes, portanto, os relatos de que o governo brasileiro esteja se movendo no sentido de financiar as CTs, legitimando-as como política pública. Isso foi ensaiado inicialmente pelo Ministério da Saúde, mas quando padrões de responsabilidade mínimos foram exigidos, as comunidades terapêuticas praticamente desistiram. Por meio da pressão de seus representantes no Parlamento – na maioria ligados à bancada religiosa – há a sinalização de que as CTs poderão receber verbas por meio da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), que é ligada ao Ministério da Justiça.
Aqui se colocam diversas questões. Se as CTs não se submeteram à auditagem do Ministério da Saúde, podemos confiar que, ao receber o dinheiro da SENAD, elas o empregarão de forma correta e para o prol das pessoas sob tutela? É lícito que o estado laico forneça financiamento para unidades que são, na maior parte, mantidas por entidades religiosas e, por isso, já não pagam impostos? Como incluir minorias religiosas, que já sofrem preconceito, em serviços confessionais? Por que colocar dinheiro público em um sistema que é carente de evidências de efetividade a longo prazo?
HÁ ALTERNATIVAS?
Essas e outras perguntas inquietantes nos levam a refletir sobre qual modelo seria uma alternativa ao da internação. Apesar de esse ser um debate complexo, diante do que está disponível, acredita-se que solução passe por uma rede interdisciplinar, voltada para o provimento de um conjunto de ações, que incluiriam redução de danos para usuários de rua, cuidados ambulatoriais, reabilitação psicossocial, acolhimento voluntário e transitório em repúblicas terapêuticas laicas, cuidados clínicos, e internação de curta duração, em geral para desintoxicação. Construir uma rede acolhedora e multifacetada suficiente exige dinheiro, o que não é fácil em um contexto onde a repressão é a política pública para as drogas que mais recebe investimentos.
É verdade que quase todas as opções citadas – com exceção de ambulatórios – estão contempladas por recentes medidas de financiamento do Ministério da Saúde. Há, porém, dois grandes problemas a serem destacados. Um é que o foco do Ministério tem se mantido no financiamento de serviços e equipes, e não do conjunto de ações a serem realizadas. O outro advém do fato que a decisão em relação à maioria das políticas de Saúde cabe, em última instância, ao município – uma esfera política particularmente sensível à pressão local para soluções sobressaltadas.
Além disso, o que continua a ser servido pela mídia ao olho público é o já monótono espetáculo das ‘cracolândias’ – o que nos faz pensar também sobre a solicitação obsessiva desse mesmo olho público para que a mídia assim o sirva. Nesse círculo vicioso, escapam constantemente ao debate tópicos que incluem, entre outros, a efetividade da chamada Guerra às Drogas, a descriminalização do uso pessoal (como feita em Portugal), o uso de psicodélicos como novas formas de tratamento, os limites da estratégia de Redução de Danos, e até mesmo os conflitos de interesses ocultos.
Há, porém, novidades interessantes neste cenário. Iniciativas como a Rede Pense Livre, a campanha “Lei de Drogas: é preciso mudar” e o movimento pela regulamentação da maconha – só para citar alguns – causam incômodo e geram a necessidade de repensarmos as políticas públicas para drogas no Brasil, incluindo o tabaco e o álcool. Se a abordagem preponderante ao uso de drogas é eminentemente construída por valores sociais, é preciso pensá-la, necessariamente, para além do setor Saúde. Aí pode ser que encontremos esperança.
Luís Fernando Tófoli é psiquiatra e professor da Universidade Federal do Ceará.
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