Natália Oto, jornalista da SUL 21, entrevistou o Prof. Dr Marco José Duarte (Coordenador do NEPS/FSS/UERJ) e o Prof. Dr Tulio Batista Franco (ISC/UFF) sobre a polêmica da Internação Involuntária. Segue abaixo a reportagem publicada originalmente em: http://www.sul21.com.br/jornal/2013/01/projetos-de-lei-centrados-na-internacao-involuntaria-de-usuarios-de-drogas-dividem-opinioes/
Projetos para internação involuntária de usuários dividem opiniões
A dependência química e a relação da sociedade com as drogas em geral
é uma das grandes questões do século XXI, em termos de políticas
públicas. Com a recente declaração do governo do estado de São Paulo
de que irá instituir a internação involuntária de dependentes químicos,
o debate no Brasil volta-se, mais uma vez, para a questão da internação
dos usuários de drogas ilícitas.
Este ano, projetos de lei que tramitam na Câmara dos Deputados, em
Brasília, e na Assembleia Legislativa do RS sugerem a instituição de
internações contra a vontade do usuário e dividem setores da sociedade
civil, políticos e especialistas.
Projeto de lei que altera Lei de Drogas institui a internação involuntária
Tramita em Brasília o Projeto de Lei n.º 7663, de 2010, de autoria do
deputado Osmar Terra, que altera a Lei de Drogas (nº 11.343, de 2006).
Entre outras atribuições, a lei permitira a internação involuntária do
usuário de drogas pelo prazo de, no máximo, seis meses. Diferente da
compulsória, a internação involuntária não passa pelo Judiciário e
ocorre mediante autorização médica.
Aprovado em 12 de dezembro de 2012 pela Comissão Especial do Sistema
Nacional de Política Sobre Drogas, criada em dezembro de 2011 para
conferir parecer sobre o projeto e composta por 28 parlamentares, o
projeto de lei segue para votação na Câmara dos Deputados. Para o
deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS), ex-Secretário de Estado da Saúde
do RS, o Legislativo não deve esperar o governo federal para agir. “A
lei é feita em cima de uma necessidade social, cabe ao governo dar
resposta”, afirmou o parlamentar, em entrevista ao Sul21.
Terra afirma que a diferença entre sua proposta e a lei atual, que
permite a internação compulsória uma vez que todas as possibilidades
extra-hospitalares estejam esgotadas, é o foco na internação
involuntária – aquela proposta pela família do dependente. “A família,
que vive o drama junto com o dependente, que sofre tanto ou mais que o
usuário, deve ter prioridade e poder pedir a internação”, afirmou. De
acordo com o projeto, os familiares do usuário podem conduzi-lo, contra
sua vontade, a um médico que fará o diagnóstico e determinará se há
necessidade de internação.
Para o deputado, que é médico, a necessidade da internação
involuntária é baseada em evidências científicas. “O objetivo principal
da internação é desintoxicar. O usuário está dormindo na rua, comendo
lixo, não tem capacidade de discernir o que é importante para ele.
Depois da desintoxicação, ele pode decidir se quer prosseguir com o
tratamento”, explica. “No momento de dependência, a pessoa precisa de
ajuda de alguém externo a ela, da família e do poder público, para
iniciar um tratamento. Há um grau de dependência no qual a pessoa nem
pensa em se tratar”, afirmou.
A internação involuntária poderia ser mais eficaz, de acordo com o
parlamentar, pois inicia o tratamento o mais cedo possível. “Você
antecipa o tratamento, pois a família detecta precocemente os sinais da
dependência. Quanto mais cedo iniciar o processo, melhor para o
dependente”, explicou.
Contrário às correntes que se opõem à internação involuntária, Terra
argumentou que políticas de redução de dano, como os Consultórios de
Rua, os Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) e as equipes de saúde
da família, que atendem a população de rua usuária de drogas, não são
suficientes para resolver o problema. “Sem tirar o dependente do local
onde ele usa a droga, o tratamento não funciona. A memória da droga é
muito forte, até a rua onde o dependente usava a droga pode dar a
‘fissura’ de novo”, explicou.
O projeto de lei de Terra também contempla as necessidades dos
usuários após o período de desintoxicação. No texto, propõe-se que haja
incentivo para empresas que derem empregos a dependentes em recuperação e
que haja um aumento do número de vagas em cursos técnicos para essa
população. “O ideal ainda é que, depois de um período de desintoxicação
de 15 a 45 dias, a pessoa, se decidir continuar com o tratamento, vá
para uma comunidade terapêutica onde fique por mais de um ano, se
possível”, acrescentou o deputado.
Terra afirmou que o projeto de lei deve ser votado ainda no mês de
fevereiro e que está otimista quanto a sua recepção na Câmara. “As
expectativas são favoráveis. Foi aprovado por unanimidade na Comissão
Especial, e lá tínhamos todos os partidos”, contou. “Pelo que percebo em
minha vivência no Plenário, o projeto deve ser aprovado com maioria de
mais de 70%”.
No RS, projeto de lei institui sistema que facilita a internação compulsória
No Rio Grande do Sul, tramita na Assembleia Legislativa o projeto de
lei que institui o Sistema Estadual de Internação Compulsória de
Dependentes Químicos. De autoria da deputada estadual Miriam Marroni
(PT), o PL facilita o processo de internação compulsória no estado. “Não
tenho competência para mudar o que estabelece o Código Penal (que declara que a internação deve ser declarada por um juiz),
mas o que podemos fazer é criar procedimentos no Sistema Único de Saúde
que facilitem a produção de laudos médicos para que o Judiciário
autorize as internações”, afirmou a deputada, em entrevista ao Sul21.
De acordo com Marroni, que trabalha com o grupo As Mães Contra o
Crack, atualmente não há quem faça um laudo que diagnostique o
dependente químico, forçando as famílias a irem direto ao Judiciário.
“Os promotores mais engajados e sensibilizados acabam autorizando as
internações, mas não há um sistema público para o estabelecimento de
laudos”, explicou. O PL propõe a formação de uma equipe multidisciplinar
que, através da rede SUS, produziria os laudos que podem auxiliar nas
decisões jurídicas.
Para a deputada, as políticas públicas ainda não responderam à altura do problema do crack.
“Temos uma rede de saúde para os cardíacos, para os diabéticos, mas a
dependência nunca foi tratada como doença. É vista como uma coisa de
‘sem-vergonhas’, malandros, marginais”, afirmou. Para ela, a dificuldade
do poder público em responder com ações concretas passa pela falta de
comunidades terapêuticas oferecidas pelo SUS, pela necessidade de um
plantão psiquiátrico qualificado, aberto 24 horas, e pela falta de
leitos em hospitais gerais – onde, de acordo com Miriam, se trata melhor
a dependência.
“Há necessidade de financiar as comunidades terapêuticas. Hoje, temos
1260 vagas que o estado compra, mas não é o suficiente. É um avanço,
mas não basta: precisamos financiar as comunidades para que se
estruturem, com uma rede física melhor e maior capacitação”, argumentou a
deputada.
Para Miriam, não se pode esperar até que haja uma “cracolândia” no
Rio Grande do Sul para agir. “Enquanto profissional da saúde, o crack não nos deixa outra saída (além da internação).
Seria negligência abandonar esses jovens à própria sorte. É um crime tu
esperares que um dia eles queiram se tratar”, declarou a deputada.
“Nesse sentido, a internação compulsória é um ato de proteção”.
De volta à Assembleia após ter exercido a função de Secretária-Geral
de Governo em 2012, Miriam garante que colocará o projeto “embaixo do
braço” e vai trabalhar para que ele passe na Comissão de Constituição e
Justiça. “Tenho certeza que os deputados partilham da vontade de criar
esse sistema. Tenho confiança no projeto, tratei muito sobre o assunto
na Comissão de Direitos Humanos, e acho que foi muito bem aceito”,
afirmou a deputada. Ela estima que o projeto possa ser votado ainda em
fevereiro ou março deste ano.
Para psicólogo, internação involuntária não estabelece relação de confiança entre usuário e equipe
O psicólogo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Túlio Batista Franco integra a corrente de especialistas que são
contrários às medidas de internação forçada de dependentes químicos.
Para ele, a internação contra a vontade do dependente é “ineficaz,
violenta e ilegal”.
De acordo com o professor, para que haja eficácia no tratamento do
dependente, é preciso que ele tenha o desejo de fazer o tratamento e que
estabeleça vínculos com os profissionais da equipe. “A partir da
confiança na equipe, se estabelece uma possibilidade de negociação de
projetos terapêuticos, com vários dispositivos, onde a internação não é o
principal deles”, afirmou Franco, em entrevista ao Sul21.
“A eficácia do tratamento está muito mais envolvida em torno do
acolhimento, do vínculo, ou seja, das tecnologias relacionais, do que
das tecnologias instrumentais”, declarou.
Para o professor, a violência do processo de ser internado contra a
vontade impede o dependente de formar esse vínculo necessário com a
equipe. “A pessoa que foi objeto de violência não vai estabelecer uma
relação de confiança com essa equipe. O componente afetivo, que é
necessário, nunca estará presente no tratamento”, explicou.
Franco acredita que as políticas de drogas que focam na internação
involuntária e compulsória desumanizam o usuário. “O sujeito deixa de
ser um filho, um pai, para ser um consumidor de droga, um criminoso. E
se desumanizamos uma pessoa, podemos fazer de tudo com ela. Inclusive
não atribuir a ela os direitos que ela tem, como o de ir e vir e o
direito de não ser conduza à força para internação”, afirmou.
De acordo com o professor, a questão da descriminalização das drogas é
fundamental e estrutural para o tratamento dos dependentes químicos.
“Uma vez que se descriminaliza, as pessoas que fazem uso da droga se
vêem seguras para pedir ajuda”, argumentou.
À curto prazo, no entanto, a solução estaria em aumentar a escala das
intervenções, como as redes de atendimento psicossocial. “Esta já é uma
questão adotada pelo Ministério da Saúde, que está investindo nisso,
mas ainda é um investimento pequeno em função da extensão do problema”,
afirmou Franco.
Para ele, a rede psicossocial ideal reúne todos os equipamentos
necessários para o atendimento ao dependente, de leitos em hospitais
gerais até os CAPS, passando por consultórios de rua e equipes de saúde
da família. “É preciso haver um investimento massivo no treinamento
destes profissionais. Em vez de dedicar recursos públicos às comunidades
terapêuticas que acolhem os internados compulsoriamente, o governo
deveria investir mais na rede psicossocial”, sugeriu.
Assistente Social atenta para possível tentativa de ‘limpeza’ nas grandes cidades
Para o assistente social e professor da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ) Marco José Duarte, o caráter social de políticas
públicas que envolvem internação forçada de dependentes químicos não
pode ser ignorado. Em entrevista ao Sul21, ele lembrou que a população usuária de crack vive na rua e é composta, em sua maioria, por afro-brasileiros que vivem em um quadro de miserabilidade.
“Essa política parte de uma lógica repressiva para manter uma cidade
‘limpa’. Por conta de um projeto de megaeventos, no caso específico do
Rio de Janeiro, as Olimpíadas e a Copa, você tem que ‘limpar’ a cidade”,
afirmou o professor. “Por motivos inclusive de especulação imobiliária,
essa população indesejada está sendo deslocada, removida do centro da
cidade”. Duarte cita o aumento de preços de apartamentos no bairro
carioca da Lapa como exemplo do resultado da especulação.
Duarte apontou que, a partir do início de 2012, a prefeitura do Rio
de Janeiro iniciou um processo junto ao Ministério Público para realizar
internações de forma compulsória, inclusive de crianças e adolescentes.
“Estavam recolhendo essas pessoas de forma massiva e arbitrária, sem avaliação médica nem acompanhamento, e colocando-as em abrigos municipais com violações de direitos humanos”, acusou o professor.
Movimentos sociais contrários à medida criaram a Frente Estadual das Drogas e Direitos Humanos do Rio de Janeiro, da qual Duarte é integrante. Após diversas audiências públicas, a Frente conseguiu exigir da gestão municipal do RJ um compromisso de transferir a responsabilidade da questão de drogas da área da assistência social para a saúde, além da perspectiva de ampliar a rede CAPS, as equipes de saúde da família e os consultórios de rua – medidas que Duarte julga mais eficazes do que a internação compulsória.
“Estavam recolhendo essas pessoas de forma massiva e arbitrária, sem avaliação médica nem acompanhamento, e colocando-as em abrigos municipais com violações de direitos humanos”, acusou o professor.
Movimentos sociais contrários à medida criaram a Frente Estadual das Drogas e Direitos Humanos do Rio de Janeiro, da qual Duarte é integrante. Após diversas audiências públicas, a Frente conseguiu exigir da gestão municipal do RJ um compromisso de transferir a responsabilidade da questão de drogas da área da assistência social para a saúde, além da perspectiva de ampliar a rede CAPS, as equipes de saúde da família e os consultórios de rua – medidas que Duarte julga mais eficazes do que a internação compulsória.
Para o professor, que é supervisor do Centro de Atendimento
Psicossocial da UERJ, o plano de enfrentamento ao crack do governo Dilma
tem falhas “absurdas”, como o estabelecimento de parcerias
público-privadas com as comunidades terapêuticas, em vez de focar na
ampliação da rede psicossocial. “Essas comunidades têm um conteúdo
moralista, conservador, e a maioria é gerenciada por evangélicos
fundamentalistas”, afirmou. “Eles não têm projeto terapêutico. Nós, da
área da saúde mental, somos contra”.
Duarte afirmou que há uma ambiguidade na própria política do governo
federal, que oferece cursos de capacitação tanto para as equipes de
saúde da família que lidam com usuários de drogas, quanto para equipes
de comunidades terapêuticas. “É como se houvesse uma correlação de
forças e o governo quisesse agradar os dois, tanto a corrente
anti-manicomial e anti-proibicionista, quanto os conservadores”.
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