segunda-feira, 13 de junho de 2011

Dez anos após a reforma psiquiátrica, Brasil ainda tem instituições públicas de modelo manicomial

Hospital psiquiátrico São Vicente de Paulam em Taguatinga, no DF - Foto de André Coelho
BRASÍLIA - Passados dez anos da reforma psiquiátrica, que teve como principal objetivo substituir as internações por um tratamento mais humanizado dos pacientes com transtornos mentais, o Brasil ainda abriga instituições públicas funcionando no modelo dos antigos manicômios. Um desses lugares é o Hospital São Vicente de Paula, em Taguatinga, no Distrito Federal. O GLOBO visitou o local em maio. Havia 56 pacientes internados (32 mulheres e 24 homens) no pronto-socorro - 14 além da capacidade do local. E não era dos dias piores. Segundo funcionários do hospital, em abril havia mais de 80 pacientes internados.
Essa realidade se multiplica em um Brasil cuja expectativa, há uma década, era extinguir os manicômios. O plano não deu certo porque o Sistema Único de Saúde (SUS) não conseguiu multiplicar as experiências positivas na área para atender toda a demanda. Dados do Ministério da Saúde revelam que ainda existem no Brasil 59 hospitais psiquiátricos públicos funcionando no modelo antigo de tratamento e outros 160 credenciados ao SUS. Nos hospitais públicos, há 32.735 leitos.
Na ala feminina do São Vicente da Paula, havia pacientes deitadas no chão dos corredores ou no minúsculo pátio, próximas a poças d'água. Outras perambulavam - uma com a bíblia na mão, uma com as roupas rasgadas, uma seminua e outra que repetia à exaustão "eu vou morrer agora". Muitas reclamavam que tiveram seus objetos pessoais furtados por colegas. A cena seria esperada, não fosse por um detalhe: nenhum médico ou enfermeira supervisionava as internas. Uma das pacientes contou que agressões físicas entre as pacientes são comuns.
Se um paciente se altera, pode agredir o outro. Quando eles chamam para apartar, já é tarde
A poucos metros dali, em uma sala reservada, havia uma enfermeira e duas auxiliares de enfermagem. As profissionais estavam separadas das pacientes por uma porta de ferro com apenas uma pequena fenda na altura dos olhos para a interação dos dois ambientes. A enfermeira de plantão, Gislaine Oliveira, confirma a versão da paciente:
- A estrutura física precisava ser melhor, com mais integração entre pacientes e médicos. Se um paciente se altera, pode agredir o outro. Quando eles chamam para apartar, já é tarde.
Atendimento aos pacientes internos é feito apenas em dias alternados
O médico Ricardo Albuquerque Lins, diretor do hospital, defende o fim do uso dos uniformes nos internos, para haver mais humanização. Mas pondera que, com tantos pacientes, fica difícil para o médico diferenciar funcionários de internos. Para Lins, a mudança no tratamento só será possível quando houver estrutura suficiente de atendimento nas unidades psiquiátricas dos outros hospitais públicos e os Centros de Ação Psicossocial (CAPs) estiverem mais bem estruturados. Ou seja, quando a descentralização do tratamento estiver concluída, com unidades de atendimento nas comunidades.
Há apenas seis CAPs no Distrito Federal. E, como o São Vicente da Paula é o único hospital psiquiátrico público do Distrito Federal, a procura é grande. Além das internações, são atendidos no ambulatório cerca de mil pacientes por mês.
Como faltam médicos, o atendimento aos pacientes internos é feito apenas em dias alternados: em um dia é feita a supervisão da ala feminina e em outro, a da ala masculina. As exceções são para casos de surtos psicóticos, que são tratados como emergências por um médico plantonista. No dia da reportagem, a médica de plantão não deu entrevista porque não conseguia terminar os atendimentos dos pacientes que aguardavam do lado de fora do consultório.
Enquanto a internação está superlotada, sobram vagas no Hospital Dia, que também funciona no mesmo lugar. Das 30 vagas, apenas 18 estavam ocupadas. O serviço atende pacientes psiquiátricos durante o dia e, à noite, eles vão para casa - ou seja, o oposto da lógica manicomial. A dificuldade é que nem todos têm recursos para pagar o transporte diário. Outro empecilho está na própria mentalidade dos médicos.
Lei enumera série de direitos do portador de transtorno mental
O modelo humanizado de tratamento, apregoado na Reforma Psiquiátrica, está sendo posto em prática nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) - que hoje somam 1.620 em todos os estados. Os atendimentos ocorrem durante o dia, evitando as internações. O serviço também é direcionado a dependentes de álcool e drogas. As equipes de profissionais são formadas por médicos psiquiatras, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e outros profissionais de saúde. Só nos CAPS, foram registrados, em 2010, 21 milhões de atendimentos ambulatoriais.
Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paula, no DF - Foto de André CoelhoAlém dos CAPS, o poder público também oferece o Saúde da Família, com quase 32 mil equipes em todo o país, as Casas de Acolhimento Transitório (CATs), os Consultórios de Rua e as Comunidades Terapêuticas. Outro grande avanço foi a criação do programa De Volta Para Casa, que dá auxílio financeiro mensal de R$ 320 a pacientes que receberam alta hospitalar após um histórico de internação psiquiátrica. O programa foi criado pelo governo federal em 2003 e beneficia mais de 3,7 mil brasileiros em 614 municípios.
Inaugurada com a Lei 10.216, de abril de 2001, a intenção da reforma psiquiátrica foi "redirecionar o modelo assistencial em saúde mental". O texto trata a internação hospitalar como exceção, e não como regra.
A lei enumera uma série de direitos do portador de transtorno mental, tais como: acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde; ser tratada com humanidade e respeito; ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; e ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.


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