CARTA ABERTA AO CAMPO DA SAÚDE MENTAL
O Estado do Rio de Janeiro tem uma longa história de lutas e trabalho na militância pela dignidade dos portadores de transtornos mentais. Essa história sempre foi pautada pela estreita articulação e vinculação entre os diversos atores do processo da Reforma Psiquiátrica, a saber, os gestores, os profissionais e os familiares e usuários de serviços de saúde mental, assim como as entidades da sociedade civil e o controle
social, onde as diferenças se mostravam geradoras de propostas cada vez mais maduras e sólidas.
A convocação da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial, nove anos após a última conferência, foi uma conquista de todos os que participam desta história.
Desde fevereiro de 2010 a agenda da Saúde Mental tem se voltado, em diferentes municípios, estados e no âmbito nacional para a organização da IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial. Em especial no Estado do Rio de Janeiro, esta mobilização tem acontecido em diferentes espaços, seja nas pré-conferências, nas conferências municipais e regionais, nos fóruns temáticos, no colegiado de coordenadores municipais de saúde mental, nos conselhos de saúde, no cotidiano dos serviços e nas diferentes redes de conversação. Este é um exercício importante, considerando os avanços acumulados desde 2001 e os desafios ainda presentes. O amadurecimento das conquistas da política de saúde mental, assim como das estratégias de cuidado e sua articulação efetiva com o controle social e com a rede intersetorial exige esforço e diálogo permanente de todos os atores envolvidos neste processo, sejam gestores, prestadores, trabalhadores, familiares e usuários de saúde mental, usuários de saúde em geral e representantes de diversos setores intersetoriais.
Em última análise é um exercício trabalhoso, produtor de muitos enfrentamentos, mas igualmente inerente à tecetura do próprio campo público e do SUS. A experiência da Área Técnica de Saúde Mental da SESDEC (ATSM) na intrincada e delicada negociação com o Conselho Estadual de Saúde (CES) desde o início do processo de construção da IV Conferência, apresenta impasses que vêm sendo compartilhados com a Comissão Organizadora da IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial. O processo de organização da etapa estadual tem sido marcado por embates entre a ATSM e o CES desde a construção da primeira versão do Regimento estadual.
As discordâncias relativas ao Regimento, bem como em relação ao próprio processo de organização e programação da Conferencia Estadual, vem sendo cotidianamente apontados pela equipe técnica de saúde mental. É importante afirmar que a IV Conferência Nacional apresenta como processo de execução e na sua organizacional a co-gestão entre a Área Técnica Nacional de Saúde Mental e Conselho Nacional de Saúde bem como sua articulação com os parceiros intersetoriais. Este processo de co-gestão não se efetivou na construção da IV Conferência Estadual de Saúde Mental,onde a interlocução com o CES e a sobreposição do mesmo ao longo do processo se apresenta sob argumentação de ordem normativa que lhes outorga um grau de autonomia e não de compartilhamento que se distancia da finalidade da realização de uma conferência de saúde.
Deparamo-nos com uma estrutura onde tudo é decidido nas Plenárias ou em fóruns internos do CES, em que as decisões pactuadas coletivamente nas subcomissões e mesmo nas reuniões da Comissão Organizadora são preteridas.
Como efeito do amadurecimento político e da capacidade de compartilhamento e apoio por parte do campo público da saúde mental, foi de vital importância o documento assinado em conjunto pelo Presidente da Comissão Organizadora da IV Conferência Nacional e o Presidente do Conselho Nacional de Saúde enviado no dia 26/04, onde a inadequação do regimento estadual foi bem explicitada, destacando itens que se apresentam em franca discordância com o Regimento da IV Conferência Nacional.
Inicialmente avaliamos que o referido documento pudesse subsidiar a equipe técnica de saúde mental para de fato construirmos uma Conferência efetiva quanto ao seu objetivo principal, de fortalecer a política e a rede de cuidados intersetoriais, onde a participação de todos os segmentos seja assegurada e potencializada.
Apesar do interesse e da presteza da Comissão Organizadora Nacional no envio do documento não obtivemos sucesso na promoção das mudanças cabíveis ao Regimento da Estadual e à organização desta conferência, o que mais uma vez ilustra a dificuldade de interlocução e de condução participativa como a mesma vem sendo conduzida pelo CES. Lamentavelmente a relação com o Conselho Estadual de Saúde coloca em risco um dos princípios do SUS que preconiza o controle social como instrumento de garantia do processo democrático no campo da saúde pública, e que é de interesse ético, político e busca ser preservado e alimentado pela Área Técnica de Saúde Mental Estadual.
Durante todo o período estivemos ativamente participando das organizações das conferências municipais e regionais. Com relação às reuniões para organização da Etapa Estadual, a Área Técnica colocou-se totalmente disponível e cooperativos a despeito das dificuldades que os técnicos da ATSM vêm sendo submetidos, incluindo as discrepâncias e a falta de clareza das informações mais triviais, como data e horário
das reuniões das subcomissões. Seguidamente apontamos as incongruências entre os regimentos estadual e nacional. Lutamos ainda para garantir a participação de toda a equipe da ATSM na estadual, o que está sempre sob discussão e questionamento, ilustrando que a construção de um processo de co-gestão não foi instaurado. Somos uma equipe que trabalha no apoio das dez regiões do estado e em ações complexas para a consolidação da política nacional de saúde mental, trabalho este que deve ser potencializado por todos os atores na discussão e construção do campo público.
Com relação às Conferências Municipais e Regionais, a Área Técnica de Saúde Mental participou destes processos de forma ativa e as eleições dos representantes municipais ocorreram de forma transparente e direta. Assim, democrática e coletivamente, fomos construindo caminhos para a realização de uma Conferência Estadual potente e indutora de ações que visem o fortalecimento da política de Reforma Psiquiátrica e a melhoria na assistência prestada aos portadores de transtornos mentais.
A determinação da área Técnica de Saúde Mental do Estado em acompanhar este processo se deu sempre na direção e com o compromisso de sustentar a realizaçãoda Conferência Estadual com ampla participação de todas as Regiões do Estado, apostando e tentando operar neste processo as mudanças apontadas pela Comissão Organizadora da Nacional. Foi na afirmação desta aposta que a Área Técnica não tornou público, até a presente data, os impasses e as enormes dificuldades vivenciadas, comprometedoras da adequada realização da IV CESM.
O que nos conduziu a publicização de nossa posição foi o fato de terem sido esgotadas todas as possibilidades de negociação nos espaços institucionais ordinários, sem que houvesse até o momento alguma mudança concreta no regimento que indique que a IV CESM será realizada da forma que consideramos adequada.
No dia 20/05 foi convocada uma reunião ampliada com o Colegiado de Coordenadores Municipais de Saúde Mental do Estado, na qual divulgamos publicamente a situação e nossa posição diante dos fatos.
No dia 21/05 foi realizada uma reunião extraordinária com o Pleno do Conselho Estadual, onde alguns pontos de divergência foram novamente discutidos, sem, no entanto, que a ATSM tivesse espaço para se colocar, sob alegação que só conselheiros têm direito a voz nessa plenária. Como resultado, as mesmas diretrizes discrepantes foram mantidas e todos os pontos polêmicos que poderiam ser objeto de destaque na
leitura do regulamento na plenária da Conferência Estadual foram retirados, impedindo assim que sejam discutidos e aprovados por esta.
Diante da gravidade da situação, enviamos um documento à Comissão Organizadora da IV Conferência Nacional com os questionamentos já apresentados, para que a Nacional possa proceder aos encaminhamentos pertinentes.
Numa direção compartilhada com a Comissão Organizadora da IV Conferência Nacional de SM, a Área Técnica do Estado até a presente data se mantém no processo da Conferência Estadual, na tentativa de reverter os pontos discrepantes considerados por nós como inegociáveis, a saber:
1. Garantir que as eleições para delegados que irão participar da Etapa nacional sejam realizadas na Etapa Estadual de forma transparente, no último dia da Conferência Estadual, imediatamente após a discussão das
propostas e anterior à Plenária Final.
2. Garantir a apresentação, discussão e inclusão de novas propostas pelos Grupos de Trabalho.
3. Garantir a presença da Área Técnica de Saúde Mental na Conferência Estadual de forma integral e efetiva na apresentação, discussão e construção das Propostas nos Grupos de Trabalho.
Diante do cenário da Reforma Psiquiátrica, composto por vários jogos de forças e repleto de tensionamentos imanentes ao campo público, a equipe tem se colocado como foco de resistências no enfrentamento de processos que destituem o Movimento da Reforma e a reorientação do modelo de cuidado em saúde mental. Esta resistência como afirmação do campo público, deve ter seu momento de fortalecimento e celebração no espaço de construção coletiva que deve culminar com a Conferência Estadual. A realização da Conferência, sem a garantia de que os pontos acima serão reconsiderados, coloca em questão uma década de trabalho em direção à consolidação da Reforma Psiquiátrica no Estado e o projeto que esta área técnica vem defendendo
com afinco para a saúde mental.
Entendemos ser este um momento fundamental do nosso trabalho como gestores: o de garantir que a Conferência se constitua como um fórum realmente político, democrático e coletivo de debates e pactuações.
Rio, 24 de maio de 2010
Área Técnica de Saúde Mental da SESDEC - Rio de Janeiro
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