domingo, 14 de março de 2010

Carta de um telespectador ameaçado de morte

Olá
Essa semana recebi de um amigo e também professor um texto-intervenção sobre o nosso contemporâneo, como ele mesmo diz, "minha minúscula militancia contra a 'vida fascista', inspirado em Baudelaire (O Trapeiro) e W. Benjamin, do lixo podemos encontrar valiosos acontecimentos produtores de estranhamento" (sic). Nessas nossas trocas de mensagens em rede de internet, pedi autorização do autor para publicar no BLOG do NEPS/UERJ. Luis Antônio Baptista, o autor do texto, imediatamente permitiu. E disse mais, faça circular! Na forma impressa o texto será publicado nos jornais do Grupo Tortura Nunca Mais e do Conselho Regional de Psicologia - CRP - Rio de Janeiro.
Para quem não o conhece, Luis Antônio é Psicólogo e Professor Titular do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFF com Mestrado e Doutorado em Psicologia Social e Pós-Doutorado pela  Faculdade de Sociologia da Universidade de Roma "La Sapienza". Autor dos livros: "O veludo, o vidro e o plástico: Desigualdade e diversidade na metrópole" (EDUFF, 2009), "Fábrica de Interiores: Formação Psi em questão" (EDUFF, 2000) e "Cidade dos Sábios: Reflexões sobre a dinâmica social nas grandes cidades" (Summus, 1999) e co-autor do livro "Dialética dos movimentos sociais no Brasil: por que Reforma Psiquiátrica (EncantArte, 2004). Foi um dos primeiros a teorizar sobre os Serviços Residenciais Terapêuticos na estratégica da desinstitucionalização pela Reforma Psiquiátrica brasileira. Militante do cotidiano!
Eis o texto:
Carta de um telespectador ameaçado de morte


 Jornalista Patrícia Kogut, gostaria de parabenizá-la pelas críticas a este "fenômeno dourado" na sua coluna sobre TV. Não sou fã do Big Brother Brasil, não torço por ninguém, mas não consegui ficar indiferente às imagens violentas e ao texto sobre a transmissão do vírus da AIDS reproduzidos pelo candidato favorito do público. Discordo da análise do psicanalista citado na sua coluna. O sucesso do professor de lutas, formado em educação física, não estaria na sua capacidade de ser o líder da casa. O participante representa, em sua performance, a virilidade e a sagacidade dos vencedores. Essas são qualidades desejadas pelo mercado do capitalismo contemporâneo que não suporta a fragilidade do humano. Mercado que vende formas nunca repetidas de uma almejada potência ao consumidor; uma potência triste, porque feita por vitórias fugazes que não conseguem dissipar a falta nunca saciada, a carência de não se ter e não ser mais. O candidato Marcelo Dourado encarna, para o público, a máscula vitória dos lutadores. Para os fãs ele seria um guerreiro. um 

Jornalista Patrícia, avalio que o mundo insuportável em que vivemos confunde estrategicamente fragilidade com impotência. No consumo de forças para sermos o vencedor, o outro só poderá ser o aliado para a realização do "meu projeto", ou um possível estorvo a esta meta, ou algo que precisará ser aniquilado. Penso, portanto, que o corpo tenso do candidato, exibindo o desejo de espancar a candidata eliminada do programa, não restringiria-se a uma característica pessoal. É preciso, com uma certa urgência, a destituição da autoria destes atos. Em nossos corpos habitam presenças que não nos pedem licença para ocupá-lo; transitam afetos, histórias, marcas do nosso tempo e do tempo de um outro que não conheço. Nosso corpo também é um trabalho incansável sobre tudo isto. A violência entranhada na musculatura do lutador extrapola territórios delimitados por umeu”, por uma identidade pessoal. Denotar impessoalidade a esta violência possibilita-nos escapar das prescrições moralistas: a violência não estaria nele, nem longe de mim, nem fora dos meus, mas como algo que nos passa, que atravessa espaços heterogêneos fazendo e desenhando corpos e almas de infinitas formas e texturas. A imagem reproduzida na TV apresenta-nos a encarnação da vida fascista. Na tela, atravessando a pele tatuada do candidato favorito do público, presenciamos o corpo de inúmeros assassinos de mulheres, de matadores de homens que desejam homens, de torturadores do passado e da atualidade, de um mercado vendedor de potência, da truculência policial, etc. No corpo paranóico do participante preferido pelo público, os músculos contraiam-se indicando que qualquer coisa que imprevisível fosse ameaçaria a sua almejada meta.  

Jornalista Patrícia, a Sra. percebeu o olhar de pavor do candidato no seu momento de fúria? Para a existência paranóica, o medo é o seu oxigênio; a atenção e a curiosidade não lhe servem para nada. Sem o temor, corre-se o risco de cair no abismo, de perder a segurança que lhe fornece o brilho da sua luz sempre ameaçada. O paranóico não é um guerreiro; para ele o mesmo perigo estará sempre ao seu lado ou na sua frente. Os guerreiros sabem que os perigos que irão enfrentar poderão surpreender, são imprevisíveis. Desta forma, as armas e as formas de encarar este desafio serão singulares, por isso são atentos ao mundo e a si mesmos. Nesta era das celebridades que fenecem rapidamente todo cuidado é pouco.

Cara jornalista, neste momento da minha carta é necessário fazer uma ressalva: as considerações mencionadas anteriormente não fazem parte de uma psicopatologia; diferenciam-se das categorias psicológicas que definem a paranóia e o seu individualismo como um mal estar da civilização. Este modo de existir seria um modo, entre outros, de darmos forma à existência. Formas tramadas, sofridas e enfrentadas pelas artes da política. O que sucede na casa do Big Brother ultrapassa os seus muros cenográficos. A vida fascista é despossuída de um autor específico, de um lugar ou de uma época. É uma modalidade de se viver que não tolera o frágil inacabamento do humano, reduzindo as diferenças à qualidades de tribos, raças, comunidades ou a marcas  irreversíveis do humano.  Ela está aí para ser vendida, usada, consumida ou combatida incansavelmente.

A aposta na fragilidade humana nos oferta a curiosidade e a atenção à alteridade, à diferença entendida como possibilidade de contagiar e, consequentemente, de nos incitar a descobrir outros sentidos para o mundo e para as nossas vidas.  Para este modo de existir, a curiosidade aos acontecimentos seria o oxigênio. O outro não seria um adversário, um aliado conivente, nem tampouco um irmão, mas apenas uma possível intensidade.  O vigor do frágil está na amorosa curiosidade por aquilo que o extrapola e radicalmente o faz e o desfaz sem os limites do fim. A fragilidade requer a atenção ao fora de mim e a coragem do pensamento para desfazer-se e fazer-se. É a ética e a estética da amizade. Trata-se de uma aposta, às vezes sofrida, de que a grandeza onipotente do eu ou do corpo são cínicos impostores, uma vez que somos feitos de encontros, de laços, de conexões nunca finalizadas por histórias e pela história.  Frágeis, nunca seremos impotentes.

Jornalista Patrícia, o candidato, apesar da performance contemporânea, reeditou  a "peste gay" dos anos oitenta, que delegava aos homens que desejam homens a culpa pela  propagação da AIDS. Essa culpa genocida matou muita gente e ainda o faz veladamente, ou não. No Rio de Janeiro do passado uma grande epidemia teve como agente da contaminação os ratos. Estes animais foram caçados e dizimados para estabelecer a saúde da cidade.  Para o integrante favorito do público, formado em educação física, entre uma mulher e um homem não haveria risco de contaminação pelo vírus HIV. Ratos foram mortos no Rio de Janeiro de outrora; homens que desejam homens continuam morrendo assassinados. Mortes que não dizem respeito só a eles, mas a todos nós. O corpo dourado mistura o brilho contemporâneo do mundo das celebridades às sinistras sombras do passado. A suástica inscrita nesse corpo é uma ameaça à vida, à esta força criadora que produz desassossego e atrai nossa atenção para além de nossos próprios umbigos. Destruir a autoria destes músculos tornando este corpo impessoal, abre-nos a chance de formular as seguintes questões: o que está  acontecendo agora de singular no nosso mundo? O que fazem e o que estamos fazendo das nossas vidas?  Fora vida fascista!!!

Luis Antonio Baptista
Professor Titular do Departamento de Psicologia da UFF

OBS: Patrícia o conceito de vida fascista é  criação de um guerreiro chamado  Michel Foucault.

Saudações Antimanicomiais e Anti-fascistas!
Prof. Marco José Duarte - NEPS/UERJ

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