Há um saudável interesse, ultimamente, no desenvolvimento do sistema de saúde mental do
país. Este interesse vem suscitando tema de novela e artigos na imprensa, muitos destes
parciais, demonstrando desinformação, ingenuidade ou, em certos casos, má intenção e
tentativa de manipulação da opinião pública. Nesse sentido, o artigo Uma lei errada -
Campanha contra a internação de doentes mentais é uma forma de demagogia, de autoria
do jornalista Ferreira Gullar, serve como base para uma reflexão. De forma extremamente
enfática, xingando pessoas como o Deputado Paulo Delgado, a quem chama de “cretino”,
Gullar acusa a classe média de “quase nunca se deter para examinar as questões, pesar os
argumentos, confrontá-los com a realidade”, pecado em que parece ele mesmo incorrer. Senão
vejamos.
O artigo desqualifica todo um processo social complexo, que vem evoluindo nos últimos 30
anos no Brasil, com a participação de diversos segmentos sociais, desde médicos psiquiatras,
outros profissionais de saúde mental e de saúde pública, poderes legislativo, executivo e
judiciário, cientistas sociais, portadores de transtornos psíquicos, seus familiares e diversos
outros setores, denominando-o simplesmente de “campanha contra a internação de doentes
mentais”. Gullar deixa a desejar como jornalista, ignorando a complexidade deste
movimento, que é de extrema importância para o avanço do sistema de saúde como um todo.
Processo que hoje consegue, inclusive, promover um diálogo intersetorial importante,
envolvendo os ministérios da Saúde, da Justiça, da Cultura e do Trabalho, a Secretaria
Especial dos Direitos Humanos, o Ministério Público e várias associações profissionais do
campo da saúde. O autor tem uma visão empobrecida do desenrolar do processo como
fenômeno internacional. Cita a Itália, que realmente inspirou o processo no Brasil, embora
não tenha sido a única inspiração. A Inglaterra, a França, a Espanha e a Austrália, entre
outros, vêm desenvolvendo sistemas similares, com uma profundidade de impacto social, em
certas perspectivas, semelhante à Itália. Vale mencionar que na Itália não resultou em um
desastre, como tenta fazer crer o autor, mas em um programa nacional que se tornou
referência mundial, adotado pela ONU como modelo para outras nações. O programa italiano
foi executado com enorme competência, envolvendo a sociedade como um todo; tem base
comunitária e economiza bastante dinheiro público. Como se sabe, um cidadão internado
gasta extremamente mais do que um que possa ser tratado junto a seus familiares, em sua
comunidade e com apoio do sistema público de saúde.
O autor parece incorrer no mesmo vácuo de compreensão de muitos que confundem um
amplo processo social de discussão das instituições com a idéia simplória da desospitalização.
Nenhum profissional de saúde mental sério defende uma posição de não internação de uma
pessoa quando necessário. Para isso, a Lei 10.216/01, conhecida como a Lei da Reforma
Psiquiátrica, e a portaria GM 336/02, que a regulamenta, apontam para diversas formas de
atenção que vão bastante além das únicas que Gullar parece conhecer, que são o ambulatório
e o hospital-dia. Há toda uma rede de serviços proposta, incluindo Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), leitos psiquiátricos e emergências psiquiátricas em hospitais gerais,
serviços residenciais terapêuticos, além do fortalecimento da atenção primária, o serviço que
deve ser oferecido nos Centros de Saúde dos bairros. Esta rede tem como acolher, abrigar,
tratar, apoiar os portadores de transtornos e seus familiares, além de ser mais econômica para
o país e oferecer melhores condições de tratamento que os nossos tradicionais manicômios
que o Sr. Gullar, espero, ingenuamente, afirma não mais existirem.
Pois caro Sr. Gullar, sinto muito lhe trazer uma verdade incômoda e vergonhosa para o nosso
país. Os manicômios continuam existindo, continuam sendo desumanos, tratando seres
humanos como animais, produzindo mais doença e, com seu papel de depósito humano
(temos milhares de pessoas internadas por 20, 30, 40 anos), continuam sangrando o dinheiro
público. Caso o Sr. ou qualquer outra pessoa duvide, será muito fácil mostrar alguns
endereços onde se pode constatar esta vil realidade. Há, também, interesses no velho sistema
de internações que não têm nada a ver com a intenção de melhorar a saúde dos usuários, são
herança da mentalidade do INPS, onde as internações, e por quanto mais tempo melhor, são
negócios que dependem da hotelaria, dos serviços, das licitações e da medicalização excessiva
dos pacientes. Muitas pesquisas financiadas pelo CNPq e MS têm acumulado evidências
científicas de uma avaliação positiva, tanto por parte dos usuários quanto dos familiares, do
tratamento realizado nos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico.
O público muitas vezes não entende estas questões e a imprensa não tem ajudado muito. A
maioria das manifestações dos órgãos de imprensa mais poderosos se coloca a favor desses
interesses, praticamente não havendo matérias que aprofundem a questão em sua
complexidade e denunciem as indignidades que se escondem por trás da desinformação e do
sensacionalismo.
Há que se entender que estão em jogo duas lógicas. Uma que defende o tratamento para os
transtornos psíquicos, como vem sendo aplicado no ocidente desde meados do século XVII,
baseada na exclusão no manicômio por tanto tempo quanto possível, dopando o paciente e
usando indiscriminadamente o eletrochoque, e sustentada em mitos como o da
improdutividade e da periculosidade absoluta do “doente mental”. Outra é a lógica que busca
caminhos mais civilizados, inteligentes, eficientes, adequados e mais éticos no tratamento de
pessoas que eventualmente necessitam de internações, geralmente curtas, e que podem ser
efetivadas na rede de CAPS e hospitais gerais. Por esta outra lógica, entendemos que os
problemas das pessoas em nossa sociedade atual são de graus variados e as novas formas de
tratamento vêm permitindo a muitas destas pessoas contribuírem de forma admirável para
nosso avanço social.
Pessoalmente, manifesto minha solidariedade para com o poeta Ferreira Gullar, por seu
sofrimento como pai, que revelou em seu artigo. Compreendo, a partir daí, sua paixão, sua
agressividade para com muitos de nós, que lutamos por um modelo de atenção que
entendemos como melhor. Há, entretanto, muitos equívocos em seu artigo e um deles talvez
seja não perceber que sua família poderia ter sofrido muito menos e tido muito mais apoio se
todos nós lutássemos solidariamente pela efetivação de um sistema digno de saúde, que inclua
uma rede adequada de saúde mental, que, apenas por interesses escusos e pela ignorância de
muitos de nossos políticos, ainda encontra resistências para sua ampliação e avanço.
Walter Ferreira de Oliveira, Ph.D.
Presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental – Abrasme
(Pela Diretoria e Conselho Deliberativo).